Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA

domingo, março 6

TELEANÁLISE


SERPENTINA CHINESA PARA INGLÊS LER


Além da convulsão social e política no mundo árabe e no norte da África, os telejornais têm se voltado, nos últimos dias, quase que totalmente para o Carnaval, desde os preparativos das Escolas de Samba do Rio (e de São Paulo, é bom não esquecer), a qualquer cobertura local que junte um punhado de gente e que atenda pelo nome de ensaio, feijão ou lavagem. Nas semanas e dias que antecederam a festa, no entanto, quatro eventos trágicos turvaram um tantinho o tom festivo da cobertura. No início de fevereiro, um grande incêndio na Cidade do Samba, uma espécie de barracão construído pelo poder público no Rio de Janeiro para funcionar como local de construção e montagem de fantasias e carros alegóricos das Escolas de Samba, destruiu boa parte dos elementos já prontos de três escolas. Uma delas, perdeu quase 100% dos adereços, fantasias e carros do desfile.



Na última semana, uma tragédia surreal ocorreu em uma cidade do interior de Minas, Bandeira do Sul, onde cerca de 100 pessoas foram eletrocutadas em uma festa de pré-carnaval, das quais 16 tiveram morte fulminante. O acidente foi causado por uma inocente serpentina atirada ao ar, como é natural em tempos de Carnaval, por um dos foliões. A serpentina perde a inocência e, por incrível que pareça, o seu dono também, sob a ótica dos telejornais que reproduziam o discurso de suspeição da Polícia, primeiro por ser importada da China e lhe faltar algum selo de qualidade desses que autorizariam sua venda num armarinho de uma esquina mineira, depois por ter uma liga metálica e finalmente porque a advertência para não ser usada nas proximidades de fios elétricos estava escrita em inglês. Quem já leu um rótulo de serpentina que atire a primeira pedra. Se for ‘Made in China’ e ainda por cima trouxer instruções em inglês então...


PETECA - A morte coletiva em Minas se deu na mesma semana em que uma jovem morreu em Copacabana, no Rio, ao cair do trio elétrico de um dos blocos de rua que vêm reinventando o Carnaval carioca nos últimos anos. No último final de semana, uma escola de samba de São Paulo teve seu barracão semi-destruído pelas chuvas que, de novo, alagaram diversos pontos da cidade. Em relação a todos estes episódios, o tom da cobertura era o de acidente e de solidariedade às vítimas, exceto no caso de Minas, em que a Polícia, e a imprensa televisiva junto, pelo que se viu em praticamente todas as emissoras, começaram a procurar o ‘suspeito’ por provocar a tragédia. Ou seja, na manhã seguinte, a Polícia e a imprensa falavam em pistas para identificar o suspeito de ter lançado no ar a arma assassina: uma inocente, brilhante, metálica e barata serpentina chinesa cujos cuidados no uso em relação à rede elétrica apresentam-se em língua inglesa. Qual foi mesmo o crime cometido pelo suspeito? Ora, quem no mundo, mesmo no auge da insanidade, poderia supor que uma simples serpentina, seja chinesa, paraguaia, paulista ou baiana pudesse, primeiro, esbarrar em linhas elétricas e, consequentemente, atingir com uma descarga elétrica de 8 mil volts cerca de 100 pessoas, matando imediatamente 16?


Sobre o incêndio no Rio de Janeiro e a capacidade de resistência das escolas prejudicadas, que, em menos de um mês conseguiram refazer praticamente tudo e por isso têm merecido generosas celebrações na imprensa, pela superação e garra, não custa relacionar essa capacidade popular de dar nó em pingo d’água para não deixar a peteca da festa cair, à quase inapetência diante de qualquer ideia de comportamento coletivo para melhorar a educação dos filhos, sobrinhos, parentes, ou para manter minimamente mais limpos, mais organizados e mais civilizados os lugares onde moram, para aquém do talento ou falta dele por parte do poder público de fazer a sua parte. É admirável ver centenas de pessoas emocionadas por terem sido capazes de, em menos de um mês, dar a volta por cima para viabilizar um desfile de Carnaval, mas é também lamentável que tamanha disposição não seja vista para tornar a vida coletiva cotidiana, nos bairros, favelas, comunidades, por exemplo, um pouquinho melhor.


LENCINHO - Mas discutir a culpa ou inocência do operador urbano da serpentina chinesa com orientações em inglês e, mais ainda, a falta de senso coletivo de boa parte da população para além da catarse da festa ou do voluntariado de primeira hora das grandes tragédias são vieses sem lugar no mundo da informação nesses tempos de Carnaval. Mais do que fatos, importam fenômenos ou imagens, mesmo que algumas delas não resistam a um contra-argumento. Sandy, a ex-par de Júnior, considerada a eterna Sinhá Moça Polyana do show business tupiniquim, se transformou nesse Carnaval em nada menos que na musa sexy e devassa de uma marca de cerveja, quando nem mesmo bebe, coisa que ela sempre afirmou com muita assertividade.

Do lado de cá da fita publicitária, Bell Marques, o suporte da única bandana com vida própria neste país, embolsou, dizem, um cachê da ordem de milhões para raspar a barba com uma marca de aparelho de barbear diante das câmeras. No mesmo dia, o telejornal local de maior audiência na Bahia anunciava em seu fechamento a enquete de fazer parar as máquinas: o que os telespectadores acharam da barba raspada de Bell? Que corressem todos para o portal da emissora e dessem sua opinião. E quem sabe, assim, a próxima campanha, com cachê estratosférico, o moço não arranca o lencinho da cabeça? Sabe-se agora que esta é tão somente uma questão de negociar o valor do cachê.   


Texto publicado originalmente em 06 de março de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA. 

Um comentário:

  1. Anônimo3/06/2011

    Como bem disse Ana Merij, sua palavra corta a verdade sem dó , sem piedade.Poucos Jornalistas são capazes de.Parabéns!
    Artigo excelente.
    Ruy Alberto Gonzales-RJ

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