A QUITINETE É A NOVA SENZALA
Malu Fontes
O diabo, sabe-se, mora nos detalhes. Uma matéria aparentemente despretensiosa, exibida na edição da última terça-feira do Bom Dia Brasil (Globo), traduz os níveis de sofisticação atingidos pelo capitalismo contemporâneo no processo de transformação voluntária, consentida e dócil da mão-de-obra assalariada, embora ‘diferenciada’, que move as engrenagens do mundo. Com ares publicitários e entre sorrisos literais, os âncoras do Bom Dia, Renato Machado, Renata Vasconcelos e Carla Vilhena, anunciavam em tons festivos e celebratórios a mais nova tendência do mercado imobiliário em São Paulo: o boom de construção de apartamentos de um dormitório, com no máximo 30 metros quadrados, que vendem hoje mais que pão quente. E não são para solteiros nem para recém-formados, mas para famílias pequenas com objetivos muito claros: melhorar a qualidade de vida (sic), não tendo que cuidar de lares maiores, que dão muito trabalho e exigem empregado doméstico, aliado ao fato de não perder tempo no trânsito e, principalmente, morar perto do trabalho.
Os apresentadores, sempre entre sorrisos típicos de quem anuncia um design novo de algo fundamental e redefinidor, para melhor, da vida contemporânea, anunciavam, num tom menos para o jornalismo e mais para o publicitário, o quanto é mais fácil, barato e prático trocar um apartamento comum ou uma casa mais confortável por um armário de 30 metros quadrados desde que essa troca seja justificada pelo auto-engano da conquista de mais qualidade de vida por morar perto do trabalho e não perder mais tempo no trânsito.
ESCRAVO FELIZ
Traduzindo a sutileza, admite-se, usando como logomarca argumentativa a ‘evolução das quitinetes’, que, para servir bem ao senhor mercado de trabalho, é preciso, cada vez mais, estar próximo dele, fundir-se com ele, mesmo que, para isso, seja necessário encaixotar uma família com filhos em 30 metros quadrados e anunciar ao mundo que esta é uma decisão sábia, pragmática e, sobretudo, em favor da qualidade de vida. Em outras palavras, para ser um escravo mais feliz e mais eficiente, é preciso inventar uma nova senzala, uma nova extensão da nova casa grande. A senzala agora atende pelo nome de evolução inteligente da quitinete do passado e o escravo, mesmo livre para fazer escolhas, escolhe viver num caixote doméstico para chegar mais cedo e servir melhor ao patrão.
Entretanto, para além das leituras em torno dos significados em torno da opção voluntária de viver para o emprego e em função deste, mesmo que dentro de uma caixa de cimento, chamava atenção na abordagem do boom das novas quitinetes, agora familiares, a ausência de qualquer elemento contraditório que aproximasse o fenômeno das características mais óbvias que o geram: a concentração de gente nos grandes centros urbanos, a falta de espaço para moradias mais saudáveis, a deficiência das redes de transporte público no Brasil e, sobretudo, os níveis de concessões que as pessoas estão, e precisam estar, dispostas a fazer em nome da disponibilidade para o trabalho inversamente proporcional à qualidade da vida privada e familiar. Ou alguém acredita que um emprego vale o custo de viver uma relação familiar, com filhos, em 30 metros?
Quanto ao tom da matéria produzida pelo Bom Dia, nem a mais sofisticada campanha publicitária de uma incorporadora voltada para a venda de imóveis de 30 metros, embalados como a solução mais inteligente, pragmática e saudável para quem quer trabalhar feliz, conseguiria ser mais eficiente que a abordagem jornalística feita no Bom Dia sobre o fenômeno. Embora a intenção da matéria possa estar longe de ter sido essa, o resultado final da abordagem converteu-se num daqueles emblemáticos casos em que a fronteira entre a informação e a propaganda dilui-se quase que completamente. Mesmo porque, nesse caso específico, alguma desvantagem ou desconforto deve haver no ato de fazer caber uma família num cubículo de 30 metros. E estes passaram longe da matéria celebratória.
MORAR NO SHOPPING
Uma tendência em todos os grandes centros urbanos brasileiros, o fenômeno do apelo imobiliário para que as pessoas se mudem para endereços próximos ao trabalho amplia-se e, no caso de Salvador, chama atenção a profusão de anúncios de apartamentos convidando as pessoas para desfrutar da comodidade que é morar não apenas nas proximidades dos principais endereços comerciais da cidade como também para que as pessoas escolham apartamentos praticamente dentro, de tão próximos, dos principais shopping centers. Não é à toa que em torno de alguns deles erguem-se hoje verdadeiras colônias de apartamentos residenciais. Ou seja, a vida doméstica e cotidiana vem sendo convidada, cada vez com mais ênfase e em nome da comodidade, para se mudar literalmente para dentro dos templos do consumo e para as senzalas contemporâneas, as imediações do trabalho. E mesmo nos endereços novos onde não é assim, o comum é destacar nos anúncios não o tamanho dos apartamentos, mas a extensão das áreas comuns do edifício. Para que um quarto confortável em extensão suficiente para as portas dos armários se abrirem se o playground é amplo?
Texto publicado originalmente no jornal A Tarde, Salvador/BA.
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