DO 'XOURNALISMO'
DE XUXA À BELA E AS FERAS
A semana jornalística começou sob
o prognóstico de que as declarações de Xuxa ao Fantástico, anunciando que fora
abusada sexualmente reiteradas vezes da infância, até os 13 anos e por
diferentes homens adultos, dariam o tom da repercussão facinha do jornalismo de
fofoca e, sobretudo, das redes sociais. Em Salvador, no entanto, a
metamorfose da versão da Rainha dos Baixinhos de 'Xou da Xuxa' para
'showrnalismo do eu', a fórmula batida de jornalismo de celebridade em que
famosos expõem intimidades e dizem coisas no divã eletrônico da TV que algumas
pessoas levariam anos gastando os tubos para falar ao analista, teve a cena
roubada pelo showrnalismo dos PPPs, o jornalismo sensacionalista que deita e
rola sobre os presos pobres da periferia e só falta bater continência para
presos de operações milionárias.
BOIADA - Em Salvador, com
repercussão para além da cidade e do Estado, uma repórter de um dos programas
televisivos populares foi espinafrada após algo que alguns chamam de
entrevista, dela com um suposto garoto acusado de estupro, cair na rede e
provocar um efeito retardado, mas acachapante sobre a moça. Os artigos
indefinidos usados até aqui, uma repórter, um programa, não é um caso de
cuidado em não dar nome aos bois. Ao contrário, é uma forma de abranger a
boiada. A moça, loura, jovem, rica, ao fazer troça com um encarcerado preto e
pobre foi atirada aos leões, mas sozinha.
De injustiça, as acusações à moça
não têm nada, mas daí a usá-la, sozinha, como boi de piranha e bode expiatório
da fórmula jocosa como presos e acusados do que quer que seja são entrevistados
pelo formato de telejornalismo que hoje viceja sob aplauso popular (segundo
mostra a audiência) e sob o silêncio da Justiça e do Estado, é hipocrisia da
boa. Moiçolos que fizeram fama como entrevistadores e apresentadores desse tipo
de programa, apenas mais feiosos que Mirella Cunha e com maior concentração de
melanina, repetem todos os dias o mesmo comportamento jocoso que o do vídeo
dela que correu as redes com um poder quase viral.
FERAS - E quem nunca assistiu a
nada parecido é porque, em nome do bom gosto ou de um comportamento blasè
intelectual prefere arrotar coisas do tipo: ah, eu não vejo lixo. Pois quem
sabe se o "lixo" viesse sendo visto mais de perto, inclusive pelas
autoridades que agora anunciam o enquadramento legal da moça nas letras
constitucionais, saber-se-ia, de há muito, que ela é tão somente a mais nova e
bonitinha cria desse gênero de entrevistador/a na Bahia. E não duvidem: deve
ter sido escolhida a dedo justamente por sua lourice, juventude, fashionice e
beleza. Ela cabe como uma luva num personagem que os programas concorrentes
ainda não tinham: a Bela, para ser explorada no vídeo como contraponto às feras
entrevistadas, ou seja, os bárbaros que TODOS os programas dessa natureza, que
se estapeiam cotidianamente pela audiência, sobretudo na grade vespertina,
exibem como as feras e os monstros que levam alguns telespectadores a salivar
sonhando com a pena de morte.
O diálogo da Bela com seu
entrevistado soa abjeto aos olhos dos defensores da igualdade de direitos entre
presos A e presos B? Sim, ninguém há de negar. Mas antes de a transformarem na
Geni solitária, que tal fazer um rastreamento analítico de seus colegas de
função na concorrência para conferir suas performances? E os delegados que
permitem tal nível de jocosidade nos espaços do Estado em troca do capital
simbólico que angariam com o telespectador que quer sangue? E o governador, que
quase que mensalmente faz uma ronda nas emissoras batendo o ponto como
entrevistado nesses mesmos programas que os críticos chamam de escória? E se no
resto do tempo é só desgraça nas cenas desses programas, nos dias de ronda do
governador nos estúdios todos os apresentadores só lhe fazem perguntas do tipo
escada, aquelas que garantem respostas bonitas ou burocráticas.
CACHOEIRA - Crucificar Mirella é
fácil. Mas cadê peito e de quem para evitar que rotineiramente seus colegas
presepeiros perguntem de um tudo a quem não tem advogado para poder ficar
calado? Carlinhos Cachoeira ficou em silêncio quase 3 horas no Congresso,
recusando-se a responder, sob as bênçãos do lastreado Márcio Thomaz Bastos,
qualquer pergunta dos nobres senadores da República. E tudo bem. Na TV baiana,
se qualquer preso ou acusado pobre insinua uma resposta hostil, os coleguinhas
de Mirella, sob as bênçãos dos delegados em busca de flash, gritam logo:
respeite o repórter! Ah, tá. O mesmo garoto que é trollado pela Bela, no dia em
que foi preso, passeou, no mesmo dia, pelas telas da concorrência. E quem disse
que foi abordado de forma muito diferente pelos outros entrevistadores e
apresentadores? Mirella não está só em seu modus operandi, ao contrário do que,
agora, querem fazer crer seus concorrentes.
Malu Fontes é jornalista, doutora
em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA
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