Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA

quinta-feira, abril 5

de se deixar fotografar ajeitando o ovo no concreto, até pô-lo direitinho. Diante de cenas assim, protagonizadas por gente que nem admite ter puxado um fumo antes, como fizeram os gêmeos, e que é levada a sério por religiosos e poderosos, quem são mesmo os doidos, os surtados e os insanos?

TELEANÁLISE
ENTREVISTA COM O DIABO


Malu Fontes
A semana televisiva em Salvador foi marcada pela presença ostensiva dos gêmeos Diego e Diogo Leão, 27 anos, nos programas populares. Com direito a exibição e repetição exaustiva de vídeos com performances estranhas dos dois, nas emissoras e no YouTube, contendo cenas que iam de beijos na linha desentupidores de pia homoeróticos e incestuosos a frases desconexas e comportamentos para lá de nonsense na delegacia, os gêmeos bombaram como sensação da imprensa ‘facinha’. Os rapazes, de uma família de classe média da cidade de Mossoró (RN), chegaram a Salvador num carro da família, usado sem permissão, e com 9 mil reais, retirados de um cofre dos pais também sem consentimento.

OUTRO MUNDO - Aparentemente sob o efeito de drogas ou sob um surto psiquiátrico, Diego e Diogo foram presos em pleno rush na Avenida Paralela, o corredor de tráfego mais intenso de Salvador, acusados de causar riscos de acidente e de morte, própria e dos demais motoristas que trafegavam pelo local. Pararam o carro numa das pistas, atravessaram o canteiro central e foram para o outro sentido, deitando-se no asfalto quente para fazer flexões, correndo o risco de serem atropelados e causando perplexidade aos motoristas. Sim, todo mundo que leu sobre os gêmeos de Mossoró nos jornais, nos sites ou os viu na TV considerou-se diante de cenas do outro mundo.

Entretanto, diante do volume de cenas explícitas de surrealismo que desfilam diariamente na tela da TV, a maioria delas protagonizadas por gente que se leva e é levada a sério por milhões de telespectadores, os gêmeos de Mossoró podem se dar ao luxo de reivindicar, no panteão da hierarquia do nonsense, uma colocação bem baixa no ranking. Nos últimos dias, por exemplo, duas sumidades brasileiras a quem jamais se atribuiu surto por drogas ou por transtornos mentais protagonizaram cenas veiculadas na imprensa que deixam no chinelo as atitudes esquisitas de dois irmãos que resolvem fazer flexão no asfalto de um corredor de tráfego de alta velocidade. 

OVELHAS - Há algumas semanas, dois bispos nacionalmente famosos por estarem à frente de milhões de fiéis de duas igrejas neo-pentecostais, ambas ancoradas na teologia da prosperidade aqui e agora e disputando ovelhas e dízimos a tapa, vêm se engalfinhando diante das câmeras de TV. O roteiro e o repertório do confronto televisivo fazem os gêmeos parecerem crianças inocentes brincando de meninos maluquinhos num parquinho de playground. Qual telespectador, em perfeito estado de suas faculdades mentais, poderia crer que, em 2012, a televisão brasileira estaria tão evoluída ao ponto de proporcionar uma entrevista feita diretamente com o diabo e exibida como se fosse algo sério e real?  Sim, uma entrevista com o próprio: ‘sete pele’, pé-redondo, demo, satanás, lúcifer e todo o corolário de codinomes que o tal tem.

Pois não é que, para acusar o bispo 2 de satanismo e de associação com práticas diabólicas, o bispo 1 convocou o próprio diabo para ser entrevistado em sua emissora, comprada com o dízimo de suas ovelhas? O entrevistado, certamente mais sensato que seu entrevistador, embora tenha aceitado o convite para a entrevista, achou por bem não misturar sua diabólica imagem, construída há milênios e, portanto, com tanto a perder, com gente de tão má reputação e parece ter negociado algumas condições: pelo que tem se percebido, o diabo só aceitou falar, ou seja, ser entrevistado, se ‘encostado’ em alguma fiel endiabrada. O ‘sete pele’ entra numa pessoa na condição de encosto e através dela responde a todas e quaisquer perguntas, todas, claro, visando confirmar que o bispo 2 é seu afilhado envidio e que representa o mal absoluto do mundo. Confirma com todas as letras que tudo fará para destruir o bispo 1 e seus seguidores. Este, como digno representante de Deus, parece que ainda não conseguiu agendar com a assessoria de imprensa celestial uma entrevista com o Pai Eterno, para que o próprio confirme todas as boas intenções do bispo 1, sua filiação legítima ao céu e ao Bem Supremo. Mas, bem relacionado como é com as outras dimensões, o entrevistador não demora e convence os céus a falarem a seu favor.

OVO EM PÉ - Como se não bastasse bispos entrevistando o diabo na TV, eis que a ministra da Cultura, Ana de Hollanda, mais apagada no cargo que as cinzas do incêndio causado há séculos por Nero, resolveu por um ovo em pé. Sim, não é ironia nem trocadilho. A irmã de Chico resolveu fazer isso na Linha do Equador. Talvez por achar que o lugar em si justificaria o ato, desse um pouco de dignidade e seriedade à coisa, a ponto de se deixar fotografar ajeitando o ovo no concreto, até pô-lo direitinho. Diante de cenas assim, protagonizadas por gente que nem admite ter puxado um fumo antes, como fizeram os gêmeos, e que é levada a sério por religiosos e poderosos, quem são mesmo os doidos, os surtados e os insanos? 

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Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 01 de abril de 2012, no jornal A Tarde, Caderno 2, p. 05, Salvador/BA

Um comentário:

  1. Lágrimas de Areia

    Lá estava ela, triste e taciturna.
    Testemunha de efêmeros conflitos,
    Com um olhar perdido no tempo,
    Não exigia nada em troca
    A não ser um pouco de atenção.

    Sentia-se solitária, oca,
    Os homens admiravam-na pelos seus dotes.
    As crianças, em sua eterna plenitude,
    Admiravam-na muito mais além...
    ... Mais humana!

    De sua profunda melancolia
    Lágrimas surgiram.
    Elas não umedeceram o seu rosto,
    Mas secaram o seu coração,
    O poço da alma,
    Aumentando cada vez mais
    A sua sede.

    Lá ela permaneceu; estática, paralisada!
    Esperando que o vento do norte a levasse
    Para bem longe dali!

    O dia começou a desfalecer.
    Seu coração, outrora seco e vazio,
    Agora pulsava em desenfreada arritmia.
    Desespero!
    A maré estava subindo...

    Em breve voltaria a ser o que era:
    Um simples grão de areia.
    Quiçá um dia levado pelo vento,
    Quiçá um dia... Em um porto seguro.


    Do livro (O Anjo e a Tempestade) de Agamenon Troyan

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