Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA

domingo, março 18

O programa, visto sem paixões, é o que se pode chamar de bonitíssimo mas ordinário.

DE ESTILINGUE A VIDRAÇA


 MALU FONTES
Alguém já disse que estatística é a arte de torturar números até que eles confessem o que se pretende que eles confessem. E ainda segundo essa máxima, os números sempre confessam. Não deve ser diferente quando se trata de relativizar em proveito próprio os percentuais de audiência medidos pelo ibope para um determinado produto de televisão cuja estreia foi numericamente muito mais para lá do que para cá. Esse foi o caso da estreia do programa TV Folha, no último domingo, das 20h às 20:30h, na TV Cultura, emissora pública do Governo de São Paulo mas com programação nacional, seja por retransmissão de parte de sua programação por emissoras regionais nos estados ou por TV por assinatura.

PROMESSA - Não é segredo para ninguém que se interessa por televisão e por políticas públicas de radiodifusão que a TV Cultura de São Paulo vem enfrentando nos últimos anos graves problemas financeiros, administrativos e de gestão, o que tem levado o Governo de Geraldo Alckmin a demitir dezenas de funcionários. Nesse contexto, um dos maiores e mais prestigiados jornais impressos de circulação nacional, a Folha de S. Paulo, comprou meia hora na grade da emissora e vem há semanas prometendo revolucionar as noites televisivas de domingo, sempre reiterando que o telespectador não tem nenhuma opção na TV nas noites dominicais. Como promessa é coisa da qual se deve duvidar sempre e infeliz de quem aposta na veracidade da concretização delas, o que o público de fato pôde ver teve muito mais de frustração do que de revelação ou revolução, seja de formato ou conteúdo.

O programa, visto sem paixões, é o que se pode chamar de bonitíssimo mas ordinário. Com mais vinhetas modernosas que informação e, como já dito, com mais promessas que informação de qualidade como produto entregue ao telespectador, a sensação que seu formato, sua forma e seu conteúdo deixaram foi a de ser um comercial bem feito para angariar novos ou manter velhos leitores da Folha no dia seguinte; um convitão publicitário para que o leitor potencial fosse fisgado no dia seguinte, seja na banca real ou nas bancas virtuais das tecnologias digitais. Até mesmo os colunistas comumente mais compenetrados em seus textos curtos na plataforma impressa e digital do jornal resolveram se mostrar um tanto quanto histriônicos demais na triunfal estreia televisiva. De modo geral, embora meia hora em televisão seja muito tempo, a impressão era que se tinha informação demais, tempo de menos e faltavam estratégias para reter a atenção do telespectador. Algo meio ‘tudo ao mesmo tempo agora’.

BISPOS - Como o jornal que pariu o TV Folha sob promessas reiteradas de revolucionar as noites televisivas de domingo faz diariamente contundentes críticas aos produtos televisivos das emissoras que disputam a tapa entre si os índices de audiência, o programa que foi ao ar não escapou da maldição da metamorfose do tipo ‘de estilingue a vidraça'. Já no dia seguinte, a TV Record, volta e meia objeto de crítica não apenas televisiva mas objeto de grandes reportagens da Folha sobre os mundos e os fundos dos bispos que a gerem, bateu no TV Folha sem dó nem piedade: esteticamente, politicamente e numericamente. Enquanto a própria Folha anunciava que o seu programa fez a audiência da TV Cultura crescer, exatamente nesses termos, a Record tripudiava anunciando os três décimos de crescimento como um retumbante fracasso.

No horário do TV Folha, a TV Cultura detinha até domingo passado uma audiência média de 0,7 pontos percentuais, segundo o Ibope. Mesmo com toda a propaganda do novo programa, com direito a anúncio de página dupla, o TV Folha teve apenas 1,0 ponto de audiência. Os três décimos que foram anunciados pelo jornal sem pudor como crescimento da audiência da Cultura foram tripudiados até mesmo por sites cuja linha editorial é atuar como observatório da mídia. Não apenas a Record, mas pesquisadores da área de Políticas Públicas de Comunicação, classificaram a parceria entre o jornal e a emissora pública paulista como venda de espaço em emissora pública para uso publicitário de produto privado, no caso, do jornal patrocinador do programa. Que venham as próximas edições revolucionárias ou, então, que cessem as promessas hiperbólicas.



Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente  no jornal A Tarde, Salvador/BA       

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