Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA

sábado, dezembro 3

Globo: a homenagem, apesar de esteticamente irretocável, deixou escapulir o quanto o tal paraíso da classe C, mesmo com um tantinho a mais de consumo, ainda conserva um ‘quezão’ de permanência na senzala.


A Classe C chega ao paraíso. Fardada E COM A TELA DIVIDIDA




 MALU FONTES


Durante a semana a Rede Globo de Televisão estreou a mensagem de Natal, desta vez estrelada por Roberto Carlos e por literalmente todas as estrelas da casa. E depois de passar um ano reiterando a informação de que a classe C finalmente aportou no paraíso, ou seja, que está experimentando como nunca a condição de consumidora, achou por bem homenageá-la na tradicional mensagem de Natal.

Embora as estrelas da peça institucional ilustrada pela legenda “a gente se liga em você” sejam o elenco da Globo e Roberto, os homenageados, segundo matérias publicadas nos sistemas de crossmídia das organizações Globo, são os brasileiros que desempenham “funções que fazem parte do dia a dia dos brasileiros, reforçando o conceito do novo slogan da emissora”. Tem garçom, taxista, sorveteiro, arrumadeira, babá, empregada, cozinheira, operário, carteiro... Cada um devidamente interpretado por uma estrela global.

LOURICE - Devidamente interpretada por alguns dos mais altos salários da casa, como Xuxa, Faustão, Angélica, Luciano Huck, William Bonner, Renato Aragão, Ana Maria Braga e outros, a classe C é a grande homenageada da campanha global. Mas como a ironia parece ter vida própria e muito de um voluntarismo que parece escorrer como água sujinha embaixo dos tapetes nobres, a homenagem, apesar de esteticamente irretocável, deixou escapulir o quanto o tal paraíso da classe C, mesmo com um tantinho a mais de consumo, ainda conserva um ‘quezão’ de permanência na senzala.
Na vinheta, sob o som de Roberto Carlos cantando a clássica global “Um novo tempo” e tendo como coro as estrelas globais, um detalhe mimoso pode até passar despercebido para a maioria dos telespectadores, mas está lá, nítido. Na mansão faustosa do Projac, onde se dão os últimos retoques para uma festa de Natal típica das classes AAA, a classe C está felicíssima, mas está onde sempre esteve: trabalhando, fardada e servindo, mesmo na noite de Natal e mesmo que dentro da farda de uma babá, de uma cozinheira, de uma arrumadeira, esteja a loirice de Xuxa, Ana Maria Braga e Angélica. Crianças felizes dos donos da festa refestelam-se numa sala confortabilíssima e saltitam em jardins. E os filhos dos empregados, simultaneamente, por onde estariam e em que Natal?
  
ROUNDS - Não foi à toa que a Globo transformou a classe C em protagonista de sua vinheta de fim de ano, dividindo o estrelato com o rei Roberto Carlos e a nata do elenco da emissora, mesmo que, talvez por uma questão de princípios e fidelidade à cultura do sinhozinho, ela tenha aparecido na peça engessada no lugar onde sempre esteve, servindo a quem pode pagar por isso em seus feriados sagrados e sem seus dias de ócio. Cada vez mais a audiência da TV aberta se pulveriza, deixando diante das emissoras mais comerciais aqueles que têm menos opções estéticas ou menos traquejo tecnológico para migrar para a Internet e as redes sociais, por exemplo. A reação dessa briga desenfreada entre as emissoras pela conquista da fidelidade da audiência da classe C tem rounds tanto sutis quanto grotescos.

Se em esfera nacional as sutilezas para a conquista da classe C se dá com a vinheta da Globo transformando Xuxa em babá, Bonner em carteiro e Angélica em arrumadeira (e todos na mesma casa, servindo à mesma família top A em seu dia mágico de Natal), em escala local a coisa fica muito mais feia quando se trata de disputar a audiência dos novos ingressos no paraíso do consumo, por quem a publicidade hoje baba para vender iogurte. Quem vive em Salvador e tem estômago para escavar no dia a dia as sutilezas da briga por audiência, a penúltima sexta-feira é tema que rende uma dissertação de mestrado. Convocado para realizar uma micareta no estúdio da TV Record durante o programa “Se Liga Bocão”, Xanddy e seu Harmonia do Samba não economizaram em quebradeiras para o público que lotava o espaço.

ARROCHA - Como a vida é real e de viés e a Record BA dispõe de um helicóptero que atende pelo nome de Águia Dourada e viva dando uma de Urubu Eletrônico, sobrevoando corpos recém mutilados por acidentes onde quer que aconteçam em Salvador, eis que ocorre, enquanto o programa estava no ar e enquanto o marido de Carla Perez rebolava, um acidente de trânsito de grandes proporções na periferia de Salvador, envolvendo dois ônibus numa colisão frontal e mais de 10 pessoas feridas, um motorista em estado grave. Enquanto isso, a TV Bahia, retransmissora da Globo, que todos os dias tem que retirar da cartola uma atração musical que pode não ter nada a ver com qualidade (muito pelo contrário) para não ser massacrada pela audiência da Record durante o telejornal do meio dia, havia escalado um trio do Arrocha, a mais perfeita tradução da música brega romântica hoje em Salvador, para enfrentar a micareta do concorrente.

O acidente e o espetáculo trágico que os dois fenômenos representavam simultaneamente para um público sedento de sangue, morte e violência acabou inaugurando um momento íntimo na TV baiana e quem sabe na TV brasileira. Para potencializar sua audiência, quem sabe duplicá-la e ainda dá um chega pra lá nos arrocheiros da TV Bahia que cantavam ao mesmo tempo no estúdio concorrente, a emissora não pestanejou: ofereceu à classe C, a mais nova habitante do paraíso e o sonho de consumo dos publicitários que anunciam na TV, uma atração dupla e simultânea. A Record Bahia, ou seja, a TV Itapoã, dividiu a tela da TV em duas. De um lado o carnaval total, com Xanddy cantando a plenos pulmões, rebolando com seu balé semi-erótico enquanto a platéia no estúdio delirava. Na outra metade, o urubu eletrônico sobrevoava a tragédia no trânsito, mostrando Bombeiros e Samu retirando vítimas sangrando das ferragens. Diante da cena, não se pode esperar outra coisa. No próximo acidente, ao invés da tela dividida as emissoras poderiam inovar mais uma vez: levar a micareta para o local do acidente. Assim, o paraíso vai à tragédia e oferece as duas juntas à classe C no sofá.

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 04 de dezembro de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA

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Malu Fontes-Jornalista, Dra. em Comunicação e Cultura Contemporâneas-Professora Adjunta - Faculdade de Comunicação da UFBA

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