Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA

domingo, outubro 30

TELEANÁLISE


AGONIZANDO NA PRAÇA ELETRÔNICA
 
MALU FONTES

No final da década de 80, a revista Veja conseguiu uma unanimidade em rejeição do público ao estampar em sua capa uma fotografia do cantor Cazuza, extremamente magro, tendo como legenda a seguinte frase: uma vítima da Aids agoniza em praça pública. Eram os tempos em que o diagnóstico de Aids equivalia praticamente a uma sentença de morte e um dos maiores artistas da música pop brasileira experimentava todas as conseqüências clínicas que o HIV então representava para o organismo, já que as pesquisas que levariam aos medicamentos que hoje garantem uma vida de qualidade aos HIV positivos estavam engatinhando.

Embora a comparação pareça grosseira, e sobretudo injusta quando se leva em conta o tipo de tratamento então dado pela Veja a Cazuza, não deve ser pecado pegar a frase emprestada para aplicá-la aos pedaços ao que aconteceu nas duas últimas semanas ao agora ex-ministro dos Esportes, Orlando Silva. Durante 12 dias, o telespectador brasileiro, seja ele de qual matriz ou matiz ideológico for, assistiu diuturnamente, como diria a presidente, até a noite da última quarta-feira (26 de outubro), e pela sexta vez consecutiva em 10 meses, mais uma via crucis, de mais um ministro do Governo Dilma, agonizando não na praça pública material, de pedra e cal, mas na praça pública eletrônica, a televisão, e nos conjuntos dos outros meios de comunicação que lhe fazem companhia no entorno.

ONGUEIROS - O calvário de Orlando Silva começou quando a revista Veja estampou em sua capa de duas semanas atrás as denúncias de um ex-policial militar e atual dono de ONG que havia se beneficiado de convênios assinados entre o Ministério dos Esportes datados do tempo em que o titular da pasta era o também comunista (do PC do B) e hoje governador distrital de Brasília, Agnelo Queiroz. Denunciado por órgãos de fiscalização do governo por ter desviado dinheiro e condenado a devolver aos cofres públicos mais de três milhões de reais, o tal acusador, amigo de séculos do partido e agora descido à condição de ‘desqualificado’, resolveu fazer o que pessoas envolvidas nesses esquemas sempre fazem: não cairia sozinho e queria uma companhia robusta. Foi à Veja e disse que o ministro Orlando Silva recebia dinheiro de ongueiros na garagem do Ministério. Provas? Embora tenha prometido, não apresentou nenhuma, muito menos imagens das cenas da garagem e assim que Silva caiu passou a repetir outro mantra: ‘agora só falo em juízo’.


BRANCA E RICA - Em meio à novela da queda, trocentas mil explicações, para o gosto de todos os pendores partidários e conspiratórios, se espalharam. Há quem acredite que Orlando Silva é um santo homem do bem e que caiu não porque um doidivanas dono de uma ONG duvidosa resolveu atirar, mas por obra e graça de Ricardo Teixeira e sua turma de velhotes da Fifa que não dão ponto sem nó e queriam o Ministério dos Esportes com o caminho livre para todas as falcatruas que pretendem montar para faturar melhor na Copa do Mundo no Brasil. Há também quem acredite piamente que tudo não passa de uma questão de racismo: o pecado mortal de Orlando Silva teria sido nascer negro, fazer dois cursos universitários, casar com uma mulher branca e rica e ousar se tornar ministro de Estado. Sim, os líderes da oposição ao Governo Dilma acreditam, ou então fazem questão de dizer em público que acreditam, na versão da garagem do ongueiro.


Para os mais sensatos, algo de podre haveria de haver no reino do ministério dos Esportes para muito antes de Orlando, lá nos tempos do ido Agnelo, pois é fato, denunciado pela Controladoria Geral da União, pelo Tribunal de Contas, pela Polícia Federal, e não inventado pela ‘histeria da mídia golpista’ conforme muita gente boa quer fazer crer, que dezenas de ONGs esquisitas embolsaram milhões de reais dizendo que iriam usar esse santo dinheirão para incluir criancinhas pobres no paradisíaco mundo abençoado dos esportes. E até as ONGs honestas, diz-se, eram convidadas a dar um dízimo das verbas que recebiam, se as quisessem receber. Há quem diga, inclusive, que Silva caiu porque interrompeu esse esquema, tentando asfixiar um dinheiroduto que escorria embaixo de sua cadeira. Quem souber a versão real, morre. Literalmente, corre-se o risco.


ALICE - Um detalhe no entanto merece atenção em tempos de ministros agonizando em praças públicas eletrônicas: os sentidos das palavras prova e condenação. Os amigos dizem que Silva foi condenado sem provas. Não é verdade. Ele não foi condenado. No Brasil, quem condena ainda é a Justiça e quem anda atrás de provas é também a Justiça, se a Polícia contribuir, quiser e deixar. Os ritos do julgamento e da condenação políticos não são da mídia, são, antes de serem dela, da própria esfera política, que se vale da imprensa para incensar os ânimos.


Quem disse que o mundo das estratégias políticas perde tempo com provas? Ele atua com a mera ideia de efeito, de aparência e, nesse contexto, não haveria Dilma no mundo que suportasse os efeitos do desgaste de um escândalo chamuscando um ministro seu, dia após dia, às vésperas de uma Copa do Mundo, mesmo que se tratasse de um homem mil vezes inocente. Ô Alice, desce desse lustre que esse mundo da política e da mídia, você bem sabe, está longe de ser essa maravilha toda... A essa altura quem ainda se importa com provas, dinheiro, ONGs, garagem? O importante, ‘o efeito’, já se deu: a queda. Tanto ninguém se importa que nesses dias todos os assessores do ministro explicavam no site da pasta uma a uma a fragilidade das acusações contra Silva, numa espécie de contra-análise do discurso dos acusadores. E... quem se interessava por aquelas respostas e explicações? Para a inocência e a culpa de Orlando Silva, diante do efeito havido, agora Inês é morta. E cremada. 


Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 30 de outubro de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA

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