A semana televisiva foi dividida em três temas dominantes, nas esferas local, nacional e internacional: a morte de nove operários num mesmo acidente, num edifício em construção, em Salvador, mais uma rodada de dezenas de prisões por desvio de dinheiro público federal, desta vez no Ministério do Turismo, e a onda de violência que durante a semana varreu Londres e cidades do entorno, sem que o mundo fosse informado das reais motivações que nutriam a onda de destruição. Em relação ao mais novo escândalo dos últimos dias em Brasília, desta vez com uma esticadinha até a longínqua Macapá, o que dizer? Sempre, na história deste país, cenas de tal natureza brotarão nas manchetes.
No dia seguinte à prisão, emergiram protestos incompreensíveis para o resto dos brasileiros que não frequentam as hostes do poder político e econômico. Bastou o segundo homem forte do Turismo ser preso para muita gente boa do Governo ir para a frente das câmeras dizer que houve abuso de poder por parte da Justiça e para classificar caricaturalmente a ação da Polícia Federal de espetaculosa. As críticas, não aos acusados, mas aos acusadores, não pararam aí: choveram queixas quanto ao uso de algemas. Se for para ser sem algemas, então que fique combinado o seguinte: em caso de prisão, os empoderados não serão ofendidos em sua dignidade pelo uso de algemas, desde que a prática também seja condenada pelos queixosos de agora quando magotes de acusados pobres e pretos forem enfiados algemados nos camburões policiais das grandes metrópoles brasileiras para a TV vespertina e seus urubus filmarem, como acontece todos os dias. E, nesses casos, a Polícia ainda contribui para a qualidade das imagens: segura a cabeça dos acusados pelos cabelos, para o close no rosto ser registrado pelo câmera amigo. O que não pode é só considerar a algema um abuso de poder quando é usada contra apadrinhado políticos. Ora, se desta vez até Sarney saiu de seus cuidados para dizer na TV que "este não se trata de um caso de Política, mas de Polícia"...
SENZALA - Sobre os operários mortos em Salvador, o choro e o protesto dos trabalhadores da construção civil e o fogo ardendo em Londres, há muito mais em comum entre os dois fenômenos do que as notícias do dia a dia permitem ao telespectador deduzir. Diante da onda de violência urbana que rotineiramente varre toda grande cidade brasileira, é jargão típico da turma formada pelos indignados de poltrona, os típicos fãs de Datena e congêneres, o bla bla bla de que os jovens violentos da periferia são a praga do mundo porque não querem fazer nada, mas querem ter tênis de grife e vida fácil. A pobreza, sozinha, não justifica violência e criminalidade, mas também é verdade que a "mão de obra" absorvida pelo crime na periferia brasileira não sabe, nem nunca soube e nem saberá fazer nada, mesmo porque nada lhes foi ensinado. Nem o be a bá.
No entanto, entre esses indignados de poltrona, quantos nutrem admiração social, mínima que seja, por esse exército de homens pobres que diariamente acordam de madrugada, recorrem a um sistema de transporte medonhamente ruim (o que nos subúrbios de Londres já teria levado a trocentos incêndios), e há anos disputam vagas no mercado da construção civil, onde, sabe-se, as condições de trabalho ainda fazem questão de repetir métodos do tempo da senzala, com direito até a figuras revisitadas mas inspiradas no velho capitão do mato?
O que pensam as classes médias altas e altas sobre a opção que diariamente fazem os milhões de trabalhadores da construção civil por uma vida tão árdua se comparada aos salários que recebem e ao reconhecimento social que (não) têm? Não pensam, pois para que pensar nesse assunto? Melhor é fazer como se faz, fingir que não se sabe das péssimas condições de trabalho que essa gente tem e da fiscalização meia boca por parte das instituições públicas. Canteiros de construção civil são, sim, com raras exceções, senzalas atualizadas onde exércitos de homens invisíveis constroem, sabe-se a que custo humano, o sonho imobiliário que vai ilustrar a vida dos melhores situados na pirâmide social. Só quando nove morrem juntos e polifraturados é que uns e outros gritam midiaticamente um "ô meu Deus!". No chão da obra, no dia a dia, o pau quebra e ninguém vê e nem quer saber. Até surgir um espigão deslumbrante vestido de vidro no anúncio publicitário convidando todo mundo a morar no quintal do shopping, como se viver dentro de um fosse, literalmente, o nirvana do mundo.
ADVINHADORES - Enquanto isso, não deixa de ser ilustrativo como o mundo não sabe o que fazer com os seus outros, aqueles que antes do politicamente correto e do multiculturalismo podiam ser livremente chamados de pobres e excluídos. Agora, ninguém sabe como nomeá-los. O telejornalismo passou a semana referindo-se às áreas de Londres onde espocavam os surtos de violência como "bairros multi-étnicos". Um nome bom e tanto para ser entendido pelo telespectador médio e mais ainda para enquadrar os indesejados do mundo que deveriam ficar estocados quietos esperando a vida passar na televisão. Mais ilustrativo ainda foi o surgimento dos primeiros advinhadores de plantão. Sem entrevistar nenhum manifestante, "especialistas" diagnosticavam: são jovens dispostos a tudo apenas para consumir, sem ter que pagar por isso. Pelo tamanho da confusão, parece ser só isso não. Mas quando trata-se dos moradores de áreas ‘multi-étnicas’, os especialistas não perguntam antes. Diagnosticam logo, sem escala, para não perder tempo. E para não perder o timing da piada, afinal, quando o Louro José vai se referir aos novos princípios editoriais da Rede Globo?
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente no jornal A Tarde, Salvador/BA.
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