AS BESTAS, SUAS CAUSAS E A IMPRENSA NA ENCRUZILHADA
Quando um homem psiquicamente perturbado entrou naturalmente em uma escola pública do Rio de Janeiro e, lá dentro, disparou durante minutos intermináveis, matando 12 crianças/adolescentes e suicidando-se em seguida, viu-se, ouviu-se e leu-se, nos e sobre os meios de comunicação, toda a sorte de avaliações sobre o fato e sua cobertura. Em relação à televisão, a crítica mais frequente feita por parte do senso comum era a de que, dando tanta publicização ao caso, veiculando sem parar tantos aspectos do caso, equivalia a estimular que outros desatinados transformassem suas fantasias de morte em ato, pois, no fundo, mais do que a crueldade insana que praticam, o que os move é o desejo de se tornarem personagem midiáticos pelo fato. E ninguém há de negar a publicidade 'espontânea' que a cobertura do 11 de setembro representou para a Al Qaeda e seu líder, Osama Bin Laden.
islamista - Há uma semana, quando o norueguês Anders Behring Breivik explodiu prédios do governo no Centro de Oslo, e com toda a facilidade e tranquilidade do mundo seguiu imediatamente para uma ilha nas proximidades e fuzilou mais de 100 jovens, matando 76, um lettering da CNN na Europa anunciava repetidamente, como num cartaz luminoso na Times Square, as duas palavras malditas preferidas hoje pelo mundo dito civilizado, associando-as a um possível suspeito: terrorista islâmico. O ocidente parece ter corticalizado a equação de que, se hay terror e morte, hay um islâmico envolvido. O assassino não era o outro islâmico, mas um cidadão norueguês, um cidadão típico do país, um terrorista cristão que não está sozinho no que pensa em sua ideologia de extrema direita.
No caso de Realengo, como os terroristas islâmicos ainda não andaram circulando por aqui e fazem parte de um imaginário alheio e distante, a equação corticalizada, nas ruas e na imprensa, é outra. Sempre com uma tendência irrefreada a politizar tudo o que é trágico e depositar na conta abissal e sem fundos da (in)segurança pública, o que não faltaram foram jornalistas, imediatamente após o assassinato coletivo na escola, a lançar diagnósticos de efeito em manchetes impressas e nas escaladas dos telejornais: 'massacre traz à luz a falta de segurança nas escolas'. Como se um radical de qualquer causa medonha disposto a matar coletivamente fosse algo previsível na rotina de qualquer política pública de segurança no mundo. Embora se saiba muito bem o tamanho do buraco da segurança pública no Brasil, dizer que o massacre de Realengo traz à tona a falta de segurança nas escolas do país é tão sensato quanto seria afirmar, agora, que o assassinato coletivo na Noruega trouxe à tona a insegurança pública nas ruas de Oslo. Casos como esses se vinculam muito mais à complexidade e imprevisibilidade do comportamento humano e quase nada à temática da segurança pública.
DATENA E CNN - A questão, no que se refere à imprensa diante de casos como o de Oslo, de Realengo ou de outro semelhante em qualquer lugar do mundo, em que homens impulsionados por comportamentos de bestas decidem transformar em ato suas causas mais irracionais, vai muito além das interpretações ligeiras que confundem o terror com islamismo, por exemplo, ou impulsos psicopatas com falta de segurança pública. Nesse aspecto, o lettering inicial da CNN sobre o suspeito do massacre em Oslo e a indignação gritada de Datena contra a falta de segurança na escola de Realengo se equivalem, ambos filhos do mesmo diagnóstico precipitado de planície.
O lugar da imprensa em casos como esses, é delicadíssimo, sob perspectivas éticas, sociais e filosóficas. Nos dois casos, os assassinos tinham uma causa prévia, manifestos de páginas e páginas que não dizem coisa com coisa e durante anos investiram suas energias, vidas e dinheiro em um projeto de assassinato coletivo. A função da imprensa é informar, narrar para a opinião pública, tudo o que ocorre no espaço social, dando-lhe o máximo de informações para que esta possa formar seu próprio ponto de vista. Pelo menos deveria seria assim em condições ideais. Mas, por outro lado, os autores desses episódios deixam claro que seus atos só fazem sentido, para eles próprios, se forem divulgados, anunciados, narrados e inscritos em escala midiática. Uma vez que a transformação das causas tortas desses insanos em publicidade em escala global, quando transformadas em ato, matando pessoas, pode estimular seguidores igualmente doentes, qual deve ser o lugar da imprensa para além da encruzilhada ética entre mostrar e omitir? Resposta mais fácil será apontar quem veio primeiro, se o ovo ou a galinha.
PERUCA - Não muito longe dessa encruzilhada, situa-se a cobertura da morte, praticamente anunciada de véspera, de Amy Winehouse. Pais zelosos ficam fulos de raiva com a cobertura da vida e da morte da cantora inglesa, por considerar que ela é um péssimo exemplo para os jovens e acusam a mídia de glamourizar a dependência química, ao dizer que a moça era uma romântica desamparada que não se conformava com o mundo fútil da fama e das aparências. De novo, a Geni que atende pelo nome de imprensa, fica na berlinda, um lugar do qual não sairá nunca. Mesmo porque, quase sempre quando sai, é por força de governos ditatoriais que tutelam suas populações decidindo previamente o que elas devem saber. Bem ou mal, genericamente, o que a imprensa diz todos os dias é mais ou menos o seguinte, numa tradução pra lá de rasa: o mundo é hostil. Bem vindo a ele, pois é o que tem pra hoje. E cada um tem medo do que pode: eu, por exemplo, tenho medo, e muito, é da imagem de Ana Maria Braga usando uma peruca para travestir-se de Amy e chamando-a, por desinformação mesmo, de Amy Whitehouse.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente no jornal A Tarde, Salvador/BA.
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