Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA

domingo, junho 19

TELEANÁLISE

                      
 A (IN)JUSTIÇA NOSSA E A DOS OUTROS


 MALU FONTES 

Menos de um mês após a TV mostrar o desfecho pífio do caso Pimenta Neves, um assassino, réu confesso, julgado, condenado e mesmo assim conseguindo viver mais de 12 anos confortavelmente em seu apartamento, graças a todas as benesses possibilitadas por incontáveis recursos jurídicos solicitados e aceitos por seus advogados em todas as instâncias do Poder Judiciário, a leniência veio à tona outra vez, agora tendo como protagonista o ex-jogador Edmundo, o animal. Uma vez animal, sempre animal. Embriagado até o último neurônio em 1995, Edmundo causou um acidente de trânsito no qual três pessoas morreram e três ficaram feridas.

  
Acusado de homicídio culposo e condenado por isso, Edmundo foi então preso e punido pelo crime por apenas 24 horas. Desde então, Edmundo vive solto e serelepe, com o processo dando mil voltas, graças à habilidade dos seus advogados. E é bom dizer que estes fazem tão somente aquilo que a lei permite que seja feito, ou seja, estão mais do que no direito de proteger até o último instante seus clientes da punição.


Esta semana, após uma montanha de recursos que já favoreceram a liberdade do acusado terem se exaurido, finalmente foram expedidos cinco mandados de prisão contra Edmundo, endereçados aos cinco endereços do atleta no Rio de Janeiro. Não encontrado em nenhum deles, supostamente por orientação advocatícia, o ex-jogador foi classificado na categoria de foragido da Justiça até ser preso em um flat em São Paulo na madrugada de quarta para quinta-feira. Enquanto isso, seu advogado, um dos mais estrelados criminalistas do país, Artur Lavigne, que tem entre seus clientes Edir Macedo, dava repetidas entrevistas onde usava sua principal tese para sustentar a prisão do animal como um equívoco: 15 anos depois, o crime/a condenação já prescreveu. Ou seja, já passou tempo demais do ocorrido para que, a essa altura, Edmundo vá para a cadeia por um acidentezinho ocorrido lá em meados dos anos 90.


ROUBAR SEXO - Como querer que um telespectador médio compreenda que a Justiça faz justiça se alguém que causa a morte de 3 pessoas pode, porque tem recursos e bons advogados, 15 anos depois, argumentar que não deve mais ir para a cadeia, cumprir pena só porque já passou tempo demais do ocorrido? As vítimas ressuscitaram? A morte delas também prescreveu, sendo um evento tão trágico que fez com que famílias tenham visto e sentido a desaparição para sempre do mundo só porque um garotão bêbado e irresponsável em seu carrão caro e possante barbarizava numa madrugada carioca baladeira?


Só para uma comparação incomparável com a Justiça dos outros, o todo poderoso boss do FMI entrou em cana em Nova York, sem direito a fiança, foi obrigado a se demitir do emprego e agora está presinho domiciliarmente nos Estados Unidos (e não em seu país, na França, com uma tornozeleira eletrônica para não fugir e com cerca de cinco milhões em bens penhorados como garantia para o caso de, mesmo assim, tentar escafeder-se). E tudo isso porque tentou roubar sexo de uma camareira de um hotel cinco estrelas.


ESTUPRO - Um caso mais ilustrativo ainda de que, na Justiça dos outros, a prescrição do crime e da pena é um palavrão comumente desprovido de sentido, é o do cineasta polonês Roman Polanski. Em 1977, sim na década de 70, Polanski teria dado umas doses de bebida e de outras cositas a uma menina de 13 anos e depois fizeram sexo. Acusado de estupro, saiu fugido dos Estados Unidos e, se colocar o pé em solo americano, será detido. Aliás, praticamente detido está, pois em 2009, ao receber um prêmio na Suiça, o cineasta foi preso e está, desde então, proibido de deixar o país, uma vez que a Suiça tem tratado de extradição com os EUA e este busca todos os dias extraditá-lo para cumprir a pena. A moça há muito já perdoou Polanski, nunca admitiu que o sexo foi forçado (a acusação foi da família, pela idade da menina), o cineasta a indenizou com alguns milhares de dólares, o processo criminal já foi extinto, mas o processo penal, enquanto ele for vivo, não prescreverá. A acusação de estupro foi feita quando Polanski tinha 43 anos. Hoje, caminha para os 78. E se vivo aos 100, não alcançará a prescrição do crime de que foi acusado nos anos 70.


A leniência da Justiça brasileira com quem tem recursos (financeiros) para comprar recursos (jurídicos) torna-se ainda mais emblemática quando se vê, sobretudo nos veículos de comunicação voltados para as pessoas de menor renda, um verdadeira convocação explícita para exterminar, seja com pena de morte, com prisão de qualquer jeito e sem julgamento ou com tiros da polícia, os infratores pretos e pardos sem sapatos sobre os quais ninguém pergunta como e por que foram parar onde pararam. Quem vai ensinar o telespectador comum, o da TV aberta, massiva, e ser crítico diante de uma TV que pouco diz de um sistema que permite que Edmundo e Pimenta Neves fiquem cerca de uma década e meia livres, mesmo quando acusados e culpados por mortes, e, ao mesmo tempo, essa mesma TV fica praticamente berrando ininterruptamente para que a Polícia vá prender restos humanos nas cracolândias e exibe sem trégua imagens de presos desdentados em fundos de camburão?  

Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto  publicado originalmente em 19 de junho de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA

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