A AMNÉSIA DE SARNEY E OS ARRANCADORES DE UNHAS
Malu Fontes
Todas as pessoas envolvidas em estudos e pesquisas sobre as relações entre a sociedade e os meios de comunicação de massa conhecem a máxima segundo a qual um fato, para de fato acontecer, precisa ser veiculado na mídia, esse termo genérico em que cabe tudo: jornal, televisão, revista, site, blog, etc. Não há constrangimento nem pruridos para admitir que, na prática, essa máxima é mais verdadeira do que se desejaria admitir. Se algo não foi noticiado nos jornais nem veiculado na televisão, é como se nunca tivesse acontecido, exceto para os indivíduos diretamente envolvidos no fato.
EX-TUDO - No Brasil, talvez venha daí, dessa atribuição às mídias o papel de guardiã da memória, e não sem uma colaboração imensa dos níveis de escolaridade e letramento baixíssimos da população, a consequência mais danosa: a memória da sociedade brasileira parece ter a duração e a permanência de uma chamada na TV, de uma notícia no jornal. Como os escândalos, as tragédias e naturalmente todos os fatos se sucedem por novos e outros a cada instante e dia, nada parece sobreviver no imaginário social quando deixa de ser do interesse para as manchetes dos veículos de comunicação. E nesse aspecto é bom reiterar a natureza dos meios de informação: não lhes cabe repetir a cada dia o mesmo e já noticiado fato, pois o conceito de notícia equivale justamente a dar publicização ao que ainda não foi dito, visto, narrado, etc. Ou seja, se a memória da sociedade exige a tutela permanente da mídia para que só assim um fato político, trágico, social, econômico se mantenha vivo, há algo de muitíssimo esquisito ocorrendo com a percepção social e não apenas com os meios de comunicação.
Nesta semana um fato, mais uma vez protagonizado pelo já icônico José Sarney, uma espécie de ex-tudo neste país e que nunca deixou de ser o todo poderoso da vez, agora despachando na Presidência do Congresso, escancarou o respeito que se tem no Brasil à preservação da memória dos fatos. O presidente do Senado, longe de manifestar qualquer constrangimento com isso, inaugurou um painel com a linha do tempo e dos fatos mais importantes ocorridos naquela casa em sua história. Por alguma conveniência, os responsáveis por contar a história do Senado acharam por bem reescrever a História do Brasil e excluíram solemente o impeachment do ex-presidente da República Fernando Collor de Mello. A imprensa encurralou Sarney para saber da razão de tamanho despautério e, como sempre, com sua verve de coronel maranhense laureado pelo fardão da Academia Brasileira de Letras, o senador pelo Amapá foi de uma obviedade insultante. Disse que não via problema algum no fato de o impeachment ter sido excluído: “aquilo foi um acidente, algo que já passou e que não deveria ter acontecido”. Aula magna de como apagar a História com uma dose cavalar de cinismo.
ARRANCAR UNHAS - A imprensa, agora com um coro fortalecido pelos blogs e pelas redes sociais, fez um escarcéu em torno da amnésia apadrinhada por Sarney e, no dia seguinte, o pai de Roseana e Zequinha voltou atrás para dizer meio que, se era para a felicidade geral dos reclamantes de plantão, ok, ele engolia em seco e faria essa concessãozinha, incluindo o tal do impeachment. E, a mirar-se no exemplo de Sarney, não demorará muito a algum adorador só do presente propor que os brasileiros esqueçam que um dia houve nesse país uma ditadura militar que torturou e matou a dar com o pau, literalmente. Há dois anos um dos maiores jornais brasileiros já escreveu que a ditadura no Brasil esteve mais para uma ditabranda. E esta semana, o sempre vociferante de raiva Lobão, cada vez mais acometido por um ódio imenso contra tudo o que diz respeito à MPB, resolveu flertar em defesa da ditadura.
Numa entrevista, o cantor defendeu a tese de que está mais do que na hora de o Brasil rever seus conceitos sobre a ditadura, pois não seria, segundo ele, admissível que o país tenha anistiado os militantes de esquerda que sequestraram um embaixador e queira agora atirar às barras dos tribunais para julgamento os militares que praticaram tortura apenas porque estes arrancaram umas unhinhas (sic). Chama Sarney, Lobão, que o senador provavelmente vai dizer que arrancar unhas foi somente um incidente, que isso já passou e que é um absurdo julgar alguém porque muita gente morreu de ‘arrancamento’ de unha em sessões de tortura e a família sequer sabe onde os corpos de seus parentes foram parar.
Pelo que os telejornais mostram todos os dias (sim, porque brasileiro parece se aproximar da sua história e da dos outros somente se a televisão e a mídia proporcionarem esse encontro), no resto do mundo todos os povos desejam não apenas rever sua história, mas, sobretudo fazer justiça contra torturadores. Para citar apenas exemplos mais próximos, tem sido assim no Chile e na Argentina. No Chile, para rever a história não a favor, mas contra os ditadores, acabaram de exumar pela segunda vez o corpo de Salvador Allende, o presidente morto no Palácio de La Moneda durante o golpe de estado dado pelo general Augusto Pinochet. Durante a semana, o mundo acompanhou o périplo do general torturador sérvio levado para julgamento na corte internacional na Holanda. Enquanto isso, aqui a história é apagada sob as benesses de um dos homens mais poderosos da República, amadíssimo, na época, pelos arrancadores de unhas, e um roqueiro rebelde, pop e moderninho se perfila voluntariamente se não defensor, mas como atenuador da prática da tortura. Brasil, esta é a tua cara.
Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado originalmente em 05 de junho de 2011, no jornal A Tarde, Salvador/BA.
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