TELEANÁLISE
Em tempos de velhas e novas guerras, catástrofes naturais no mundo e avalanches diárias de violência na TV doméstica, nada mais recomendável para o olhar saturado do telespectador do que voltar aos arquétipos imemoriais dos contos de fadas e consumir doses diárias de emoção alheia, de um tipo ao mesmo tempo novelesco e real: um casamento de princesa que, no mundo inteiro, anuncia-se em contagem regressiva. Quando, no próximo sábado, o príncipe inglês William e a plebeia Catherine Elizabeth Middleton trocarem alianças e pactos de amor eterno na Abadia de Westminster, em Londres, no mesmo lugar onde há 30 anos casaram-se Diana e Charles (pais do noivo), nada menos que 2,5 bilhões de telespectadores em todo o mundo estarão de olhos vidrados na tela. E, estranhamente, cada telespectador saberá mais detalhes da vida privada do casal do que sabe sobre sua própria família.
Sedenta de novos personagens para encher os olhos da audiência, a TV do mundo rendeu-se aos encantos de Kate Middleton desde que o noivado com o príncipe inglês foi anunciado oficialmente ao mundo e ela foi entronizada como o mais novo ícone fashion, embalada em um wrap dress azul (vestido envelope) e ostentando um anel de diamantes e safira do acervo da falecida sogra. Desde então, e num crescendo à proporção que o casamento aproximava-se, o casal principesco foi ocupando com a força de um tsunami todos os espaços midiáticos, dos jornais impressos regionais do interior do Brasil aos sites de moda mais antenados de Tóquio, passando por generosos espaços no francês Le Figaro, que na última quarta-feira inseria um caderno especial dedicado ao casal real. Blasè como exige o comportamento francês, o jornal falava da moça a pretexto de abordar curiosidades dos ingleses, e não dos franceses, claro, sobre a moça. Ah, tá.
PITANGAS - Embora a mera ideia de um casamento de princesa pareça não fazer o menor sentido no mundo contemporâneo, na prática o comportamento da audiência global parece dizer exatamente o contrário. Tudo o que se refere à vida do casal é sucesso de venda e público. O ar de cerimônia ritualística e de sonhos parece impregnar todas as abordagens na imprensa, mesmo quando se sabe que os noivos já moravam juntos há tanto tempo que os tablóides ingleses ironizavam a moça chamando-a de Waity Kate (a paciente Kate), numa insinuação de que William iria enrolá-la o resto da vida sem casamento. Na prática, o espaço dado pela mídia do mundo a Kate desenha-se como um dos mais desafiantes fardos para quem, cerca de três décadas depois, é colocada, querendo ou não, no lugar de um dos ícones de comunicação de massa mais registrados do século XX, Lady Diana, que, até a morte (em um acidente de trânsito, em Paris), foi literalmente submetida à perseguição inclemente dos fotógrafos.
Sobre a tão discutida e (mal)diagnosticada relação entre Diana e a mídia, em todos os seus formatos, vale dizer que, nessa história, embora aqueles que a mitificam e preferem emoldurá-la como vítima e mártir dos paparazzi digam o contrário, não há santinhos nem demônios. Se a imprensa cor de rosa ou marrom importunava a doce Lady Di, ela, por sua vez, não se fez de rogada e soube usá-la muito bem, e como ninguém das hostes da realeza havia feito até então, para vingar-se daqueles que ela aparentemente considerava seus algozes verdadeiros: a rainha ranzinha Elizabeth II, que nunca tolerou uma nora tão dada às lentes e câmeras, o marido feioso, rabugento, anti-carismático e adúltero e a amante dele, Camila. Foi através dessa imprensa (a dos tablóides e dos programas de TV voltados para a vida das celebridades) que a infeliz, bela e fashionista falecida sogra de Kate chorou as pitangas que o resto do mundo prefere crer que as cinderelas reais não têm.
CAVALOS - Quanto à Kate, em um mundo em que o exagero e o gozo da felicidade explicitada parecem ser todo o tempo exigidos das pessoas que caem no encanto da indústria de celebridades, o desafio é aliar essa personagem de referência em moda, beleza, comportamento e atitude que a mídia do mundo já grudou nela à contenção e ao comedimento que a realeza inglesa cobra dos seus. Em um contexto onde se tem, de um lado, os tablóides ingleses inclementes e, de outro, nos domínios de Buckingham, os rigores da rainha-mãe (que Diana preferiria chamar de má), ser feliz para sempre, o mantra dos contos que nomeia o destino das princesas após o casamento, é algo muito mais improvável do que aquilo que se espera dos quatro cavalos que conduzirão a carruagem dos recém-casados pelas ruas de Londres, entre a Abadia e o Palácio. Há meses os pobres-ricos bichos vem sendo adestrados para tirar de letra os barulhos da multidão estimada em um milhão de pessoas entre as quais os equinos reais terão que passar.
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