Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA

domingo, janeiro 23

TUDO DE NOVO OUTRA VEZ


“Os personagens mudam, mas os cenários são os mesmos". Esta fala da locutora Isabel Sales, entrevistada durante o resgate de três corpos mortos soterrados em deslizamentos, no início da semana passada, na cidade paulista de Mauá, foi veiculada em todos os telejornais da Rede Globo e da Globo News. No mesmo dia em que a entrevista de Isabel fora ao ar, à noite cerca de mil pessoas morreriam também por soterramento e afogamento nos municípios fluminenses localizados na região da Serra do Mar, numa tragédia cuja escala não registra precedência no Brasil.


É verdade que as mortes ocorridas na região serrana do Rio são uma exceção em tudo, mas nem por isso a fala de Isabel deixa de ser a tradução mais que perfeita para as tragédias anunciadas a cada ano, causadas pelas chuvas de verão, não apenas nas mesmas cidades brasileiras, como São Paulo e cidades do sul de Minas, por exemplo, mas a cada ano em diferentes municípios. Só para efeito comparativo, não deve ser esquecida a desproporção matemática entre todos os mortos em função de chuvas no Brasil este ano e os mortos na Austrália, por exemplo, que enfrenta as piores enchentes de sua história em um século.

É fato que as tragédias climáticas fazem e farão parte da história natural do mundo e, que, diante do fenômeno das mudanças climáticas, envolvendo secas, nevascas e enchentes, tudo leva a crer que se tornarão ainda mais frequentes do que já o são. No entanto, em um mundo dotado de tanto instrumental científico, de tanta tecnologia de ponta que permite antever desastres antes de eles acontecerem, ainda não se chega ao ponto de esperar que o domínio científico impeça a ocorrência dos fenômenos naturais. Mas a incapacidade de impedir o tamanho da catástrofe sobre centenas ou milhares de vidas já é coisa de outra ordem e que pouco e muitas vezes quase nada, tem a ver com a natureza.

RIBANCEIRA - Quando não há 'teto', o mundo dos negócios impede que pessoas embarquem em aviões rumo aos céus, em qualquer lugar do mundo. Sem teto, aviões são proibidos de sair do chão. Então, por que, para ficar no caso brasileiro, quando se sabe que índices pluviométricos diluvianos cairão sobre determinadas cidades, não há hoje nenhuma cidade do país dotada de nenhum mecanismo técnico de prevenção para, se não impedir toda e qualquer morte, pelo menos reduzir os números trágicos a algo perto de zero?


As poucas mortes ocorridas por deslizamentos e por afogamento em águas de enchentes nos bairros às margens dos rios Pinheiros e Tietê, São Paulo, por exemplo, são mais inexplicáveis e inadmissíveis que as centenas das ocorridas em Nova Friburgo. Em São Paulo, o que ocorre é a tradição do mesmo cenário com diferentes/novos personagens, ano após ano. No caso de São Paulo, é a natureza, sem nenhuma resistência do poder público, fazendo, a cada verão, tudo de novo outra vez. Já em Friburgo, por exemplo, ao contrário, nada há de rotineiro no fato de uma serra íngreme, completamente desabitada e coberta de floresta virgem, que, por excesso de água da chuva infiltrando-se num solo de topografia peculiar, desce ribanceira abaixo, a uma velocidade de 150km por hora, destruindo bairros inteiros que sequer eram localizados em área de risco e soterrando de lama até o teto o centro da cidade. Nem os cumes de serras que despejaram água, lama e árvores morro abaixo eram habitados ou devastados e nem tampouco o centro de Friburgo localizava-se em encosta. Já o Tietê, derrama-se (e mata) todos os anos.


O diabo mora é nos detalhes. O que se esconde por trás das tragédias que assolaram, antes, Santa Catarina, Alagoas, Pernambuco, Angra dos Reis, Niterói (Morro do Bumba) e, agora, Mauá, São Paulo, dezenas de cidades de Minas e que causaram uma hecatombe na serra fluminense, é a demonstração de uma tese perversa. Embora a sofisticação e a eficácia científica e tecnológica garantam hoje quase todas as conquistas e proteções para os mundos corporativos, quando se trata de prevenção para garantir vidas humanas, sobretudo em países pobres ou mesmo em passos avançados de desenvolvimento, como é o caso do Brasil, o assunto parece ser ainda algo para ser tratado no departamento do divino.

AMÉM - Avião não voa sem teto porque há leis, planos, regras e equipamentos que impedem. Mas, mesmo diante da previsão de que índices pluviométricos excepcionais cairão sobre cidades, nada é feito para impedir que pessoas morram rotineiramente e às centenas em consequência disso. Se um avião cai porque voou com ou sem teto, o mundo das corporações e as corretoras de seguros pagam indenizações milionárias às famílias dos mortos, mesmo que sob batalhas judiciais. Quanto de indenização os gestores públicos que histórica e rotineiramente não movem uma sirene para impedir dezenas de mortes numa noite de chuvas já pagaram a familiares de vítimas no Brasil? As tragédias urbanas brasileiras sempre são anotadas na cadernetinha já ensebada da vontade divina e na falta de bom senso de São Pedro para regular as torneiras das chuvas. E o próprio povo, quando sobrevive, ainda manda recado aos céus pela tela da TV: os seus morreram porque Deus quis e os salvos são os privilegiados da bondade e proteção do mesmo Deus. Amém.

[ Texto originalmente publicado no jornal A Tarde, Salvador/BA.]

Um comentário:

  1. Anônimo1/23/2011

    Estrictamente perfeito.
    Valeu a leitura.
    Luiz Alberto Filgueiras-Lisboa

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